As incertezas do mundo

Ou seria: um mundo de incertezas? Porque do jeito que a coisa anda, não dá mais para saber o que vai ser daqui pra frente; e não importa se você está no Brasil, nos EUA, ou aqui no sudeste asiático.

Há dois meses eu estava entrando num avião com destino à Ásia, sem saber ao certo qual seria meu itinerário ou quanto tempo eu ficaria.

No começo de novembro eu cheguei em Myanmar (Birmânia), ansiosa para viajar por esse país tão fascinante.

Dois dias depois que cheguei em Myanmar, teve eleição para presidente dos EUA.

No dia seguinte à eleição, toda a minha empolgação por estar num país tão exótico cedeu lugar ao silêncio e a descrença. Eu fiquei muda por horas enquanto seguia o resultado da votação que acabou elegendo Donald Trump.

Eu sei que ninguém mais aguenta ler sobre o Trump. Eu escrevi um pouquinho mais sobre isso na versão em inglês desse post, e para quem quiser saber o que eu acho (em inglês) é só clicar aqui e ler a primeira parte do texto.

*

Para além das incertezas que rodeiam os EUA e o mundo como um todo, minha vinda para Myanmar me apresentou um país que também se encontra num momento de indefinições.

Myanmar é um país numa encruzilhada. Não acho que existe descrição melhor. É um país com imenso potencial de desenvolvimento econômico, social e político, que patina ao lidar com décadas de governo militar e com uma democracia frágil e que ainda engatinha de tão nova que é.

Durante as 4 semanas que passei no país, eu visitei as animadas e barulhentas Yangon e Mandalay; a capital do estado de Kachin, Myitkyina; fiz o trekking the Kalaw para Inle Lake; fui até a maravilhosa e mágica Bagan; e visitei a cidade onde morou o escritor inglês George Orwell, Mawlamyine.

Eu não segui um roteiro muito lógico… Acabei me planejando conforme a disponibilidade e agenda dos amigos que estão por aqui. Afinal de contas, não é muito mais legal poder visitar a região com um amigo que é local? Ou ir a um casamento tradicional, para o qual a sua amiga foi convidada? Assim, dessa vez eu preferi ir onde as pessoas estavam, mesmo que isso significasse longas distâncias e muitas horas me locomovendo de um lugar a outro.

Esse meu planejamento sem lógica também contribuiu para aumentar o número de lugares a visitar na próxima vez que eu vier ao país: Putao, ao norte, olhando para a parte leste dos Himalaias; Sittwe, no estado de Rakhine, onde conflitos étnicos/religiosos têm acontecido frequentemente; Naypidaw, a capital fantasma do país – será uma Brasília do século XXI?; Dawei ao sul e as áreas de fronteira com a Tailândia.

Myanmar é, sem dúvida, um país para visitar. Está mudando e mudando rápido. Espero que mude para melhor, apesar de algumas pessoas com quem conversei não estarem tão otimistas.

As pessoas são elegantes e lindas em suas longas saias chamadas longyi. Eu amo, AMO homens usando longyis. Eles ficam tão charmosos! E as mulheres sempre elegantes combinando as cores das saias e das camisas; as roupas sempre ajustadas ao corpo, feitas sob medida. Eu não me lembro de ver gente obesa, mesmo com uma comida tão oleosa. Me disseram que óleo é sinal de riqueza na cultura local. Minha barriga reclamou um pouco… mas ainda assim não vi obesidade.

A paisagem me lembra muito o Brasil. O trajeto entre Mandalay e Bagan, e Bagan e Yangon, me transportou para o cerrado e suas veredas. Cidades como Yangon, Mandalay e Myitkyina me lembraram de cidades do norte e nordeste como Manaus, Belém e Fortaleza. Cachorros de rua, falta de calçada para pedestres, motoristas que aceleram ao invés de brecar quando notam que você está tentando atravessar a rua; pequenas coisas que me levaram de volta ao meu país natal.

As pessoas também têm algo de “brasileiras”; são super hospitaleiras e muito simpáticas com estrangeiros. Quando não são muito tímidas elas retornam o meu “mingalabar” – “oi” em Myanmar – e até puxam um papo e pedem para tirar uma foto comigo. Elas sempre se oferecem para ajudar quando eu pareço perdida, e isso fez com que eu encaresse meu próprio preconceito e bagagem pessoal, pois fico achando que vão me passar a perna, cobrar mais que o devido, ou me mandar para o lugar errado. Mas daí me lembro que aqui é Myanmar. Relaxo e saio rindo de mim mesma.

Algumas breves anotações de viagem (sorry, por enquanto apenas em inglês) sobre os lugares que visitei estão aqui.

O que eu vi e ouvi durante a minha estada em Myanmar só corroborou com a minha ideia inicial de que este é sim um país fascinante. Há ainda muitas áreas proibidas para estrangeiros por causa dos conflitos entre o exército (ligado ao governo, mas independente do poder executivo) e grupos armados e minorias étnicas. Atualmente, um dos conflitos de maior repercussão internacional acontece em Rakhine e envolve a minoria muçulmana.

Ao mesmo tempo que eu tenho um olhar do tipo “uau”, de curiosidade e excitação pelo simples fato de estar aqui, eu também carrego comigo a inquietação, intuição e olhar crítico de geógrafa. Não consigo parar de pensar que apesar de lindo esse é um país onde há muita tensão no ar e muita incerteza com relação ao futuro.

Nesse momento, com o que acontece em Rakhine, a incerteza é um tanto óbvia: como o governo democraticamente eleito em 2015 vai lidar com os conflitos atuais? Porque Aung Sang Suu Kyi, que ganhou o Prêmio Nobel da Paz, não se posiciona sobre esses conflitos?

Há também incertezas menos óbvias: será que as políticas postas em prática estão de fato contribuindo para um desenvolvimento efetivo e para a formação de uma sociedade justa e inclusiva?

Menos óbvio ainda, o que está por trás da forma com que o governo e o exército têm ocupado os territórios e, assim, expressado seu poder sobre ele?

No norte, no estado de Kachin, por exemplo, há um acampamento com famílias do sul do país. Elas foram levadas para lá pelo governo para trabalharem na instalação e manutenção de postes e linhas de transmissão de energia. Minha primeira pergunta foi “porque não contratar mão de obra local?”, “Boa pergunta!” respondeu meu tradutor. Para ele há uma estratégia “não-oficial” de colonização e ocupação de regiões como Kachin – onde 98% da população é Cristã. Vale lembrar que Myanmar é um país budista, e esses trabalhadores vindos do sul são todos budistas.

Numa outra ocasião, meu guia fez um comentário sobre “a necessidade de construir prédios cristãos no topo dos morros, porque os budistas estão se apropriando de todos os morros da região e construindo pagodas (templos) em todos eles.” Para uma geógrafa como eu isso é fascinante. É um claro exemplo de como o poder se expressa sobre o território. Eu tenho total consciência de que meu conhecimento sobre as dinâmicas e complexidades que envolvem política, religião e minorias étnicas em Myanmar ainda é bem pequeno, mas devo confessar que depois de ouvir esse comentário – que veio de uma forma tão natural e despretensiosa – eu passei a olhar a presença budista de uma forma diferente, com um pouco mais de desconfiança, até mesmo mais do que eu gostaria.

Essa inquietação e desconforto só fez aumentar minha vontade de aprender mais e mais sobre esse país, e de seguir de forma mais próxima como as atuais incertezas vão se desenrolar e impactar o desenvolvimento econômico, político e social. O processo pelo qual o país está passando me lembra muito o período pós-governos militares na América Latina. Vai ser interessante voltar para Myanmar daqui há alguns anos e ver qual o caminho que o país tomou.

 

Quer ver fotos? Clique aqui. Ou dê uma olhadinha lá no Instagram @literal.uncertainty

 

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